quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Peter Burguer e Hall Foster: duas posições para a análise da obra de arte contemporânea

A questão da arte autônoma no seio da sociedade burguesa já foi, por muitos autores, referenciada como um giro fundamental na história da arte e o marco da passagem desta para sua modernidade. Autonomizar-se significava, para o artístico, liberar-se de funções sociais, de obrigações representacionais, seja teológicas, sejam políticas, para permitir-se pensar a si mesma. O ganho dessa consciência de si, pela arte, implicou em sua secularização, em sua racionalização e, segundo Weber, em sua constituição como esfera autônoma (como campo, diria Bourdieu).

Essa constituição da arte como esfera autônoma implicou, por outro lado, em um cada dia maior afastamento da arte da práxis vital. Esse diagnóstico, já encontrado pelos autores da Teoria Crítica, é visto como o sintoma de uma outra dominação da arte: se esta já não está mais sujeita à religião e a funções sociais de integração, agora serve como via de escape de uma ideologia burguesa de originalidade e distanciamento do social. Para Benjamin, isso é representado pela aura dada à obra de arte, por exemplo.

Peter Bürguer (2008), um dos autores mais importantes para se compreender a arte de vanguarda e seus processos de ruptura no início do século XX, parte deste diagnóstico também. Para ele, considerar a autonomia do campo artístico como uma categoria da sociedade burguesa é o caminho para a reflexão que permite compreender o processo através do qual a arte se desligou do contexto da práxis vital. Sendo assim, ele enxerga o modo como essa autonomia se apresenta, como erguida sobre fortes ideais estéticos – filiados ao pensamento humanista, de orientação filosófica essencialista –, retirando, por essa operação, todo o caráter de construção histórica do processo de autonomização do campo artístico.

Igualmente aos teóricos de Frankfurt, Bürguer identifica que a sociedade burguesa operou a cisão entre o conjunto de elementos que envolvem e compõem a atividade artística e a práxis de vida. Isso gerou uma espécie de “falsa representação da total independência da obra de arte em relação à sociedade” (BÜRGUER, 2008:101), ou seja, sua autonomia. Em outras palavras, o status de autonomia que a esfera da arte adquiriu no contexto da sociedade burguesa, passando, assim, a se configurar como um campo propriamente dito, traduziu a completa separação entre o mundo da arte e o mundo da vida comum.

E é a partir do questionamento que a arte de vanguarda fará a essa ruptura e distanciamento da instituição-arte burguesa em relação à praxis vital que Bürguer baseia a sua análise. Partindo de sua própria constatação de um cenário pessimista, Bürguer vê, exatamente no contexto em que o esteticismo chegou à sua exacerbação, a possibilidade de crítica contra a arte burguesa emergir. Para ele, o movimento de autocrítica só pode ser articulado porque a arte deixou de apresentar uma função e se tornou um fim em si mesma. Dessa maneira, a perda de função da arte como um elemento basilar da arte burguesa foi a condição de possibilidade do momento de autocrítica empreendido pelos movimentos históricos de vanguarda.

Nessa empreitada, aproxima-se de Benjamin por, da mesma maneira que este autor, pretender buscar nos movimentos de vanguarda elementos emancipatórios diante de sua atual configuração – seja como instituição-arte, seja como mercadoria. E, igual a este, verá nos movimentos de vanguarda a operação de um questionamento que não era somente estético, visto que as manifestações da vanguarda tinham como proposta questionar e romper os valores estéticos do sistema de arte enquanto valores da sociedade burguesa de maneira geral. A crítica ao esteticismo, não era somente um questionamento da instituição-arte burguesa e seu afastamento da vida. Era um questionamento dos seus valores, do sistema social burguês que representava. Ou seja, enquanto o esteticismo transformava o distanciamento entre a arte e a práxis vital em conteúdo das obras, os vanguardistas almejavam, a partir da arte, constituir uma nova práxis vital, radicalmente diferente da práxis de vida burguesa, basicamente orientada por uma racionalidade voltada para os fins.

Em outras palavras, as vanguardas operaram não só um movimento estético, mas também social de questionamento da racionalidade instrumental dominante no mundo da vida. E, operando um movimento de autocrítica – uma espécie de desconstrução no interior da instituição-arte – inciaram um processo artístico de aproximação da arte com a vida e, também, de destruição do que era a arte dentro da instituição burguesa.

A arte de vanguarda, portanto, precisava abandonar o caráter de objeto aurático, cuja origem atestava sua autenticidade e, portanto valor de culto, para ser jogada de volta à cidade, à vida. Foi aí que Duchamp fazia um mictório de escultura, ao assiná-lo com um nome falso, operando uma ridicularização do sistema legitimador da instituição-arte (para a qual a origem era um importante sinal de valor da obra). Com essas e outras ações ruptoras, a vanguarda pretendia uma não-arte. Mas com isso não pregava o fim da arte em si mesma, mas a desarticulação do que era essa arte burguesa.

E esse desmantelamento se dava nos níveis da produção e, também, da recepção artística. Ou seja, a tendência vanguardista recusou, ao mesmo tempo, o tipo de produção artística da arte burguesa, de caráter individual, e, também, o tipo de recepção da obra de arte verificado no contexto de desenvolvimento da arte na sociedade burguesa, também individual: aquela recepção que demonstra uma nítida e profunda separação entre quem produz o trabalho de arte e quem o recebe. Desse modo, quebram não somente com o tipo de produção aurática, seguindo benjamin, mas com uma espécie de recepção aurática também, que reforçaria esse caráter sagrado que se impingia às obras. Ou seja, passa-se de um tipo de recepção individual, sagrada, ritualística, inacessível, para um de tipo mais coletivo e acessível, no sentido de que a arte poderia ocupar, inclusive, o espaço de convivência das pessoas – a cidade.

Tornar a arte acessível, dessacralizada, devolvê-la ao nível da experiência, desmantelá-la em seu modo de produção/recepção burguesa, impor uma nova forma de produzir arte, tudo isso fazia parte do projeto das vanguardas históricas. Porém, diz Bürguer, a história as condenou e elas fracassaram em seu projeto ao tornarem-se, anos depois, musealizadas. Isso porque as neo-vanguardas dos anos 1960 retomam todas essas práticas inciadas no início do século XX, mas agora, sem uma pretensão tão violentamente desconstrutiva, dentro da instituição-arte.

Para Bürguer o fracasso começa a se der a partir de uma absorção dos processos ruptores das vanguardas. Por exemplo, por se configurar numa experiência única e de caráter impactante, a estética do choque não apresenta um efeito duradouro, na medida em que sua repetição transforma o sentimento de estranheza que ela suscita em algo já conhecido, familiar. O choque, defende Bürger (2008), passou a ser esperado pelo público que, ao tomar conhecimento das nada convencionais manifestações dos dadaístas e das escandalosas reações que elas provocavam, passou a ir a esses eventos com a expectativa de ver o que tanto estava sendo repercutido nos grandes veículos de comunicação de massa. Tal situação produziu, então, a institucionalização da estética do choque e, com isso, o projeto das vanguardas de destruição da instituição arte e do retorno da arte à práxis vital parecia estar fracassando. A instituição-arte parece ter vencido a vanguarda, reabsorvendo-a em seu interior e reproduzindo-a, tornando-a arte aí dentro.

É aí que Bürguer, que vinha muito próximo de Benjamin em sua análises das vanguardas (caráter de aberto e fragmentário das obras vanguardistas, a noção de alegoria em contraposição à de aura) se aproxima de Adorno em seu diagnóstico final. As vanguardas morreram porque foram absorvidas de volta pelo mercado. Segundo ele, ao invés de se alcançar efetivamente a recondução da arte em direção a uma nova práxis vital (que não a do burguês), o que se conseguiu foi, com a indústria cultural, o desenvolvimento da falsa superação da distância entre arte e vida. E será esse o diagnóstico inspirador para vários autores que se debruçarão posteriormente sobre a arte pós-moderna (ou arte contemporânea): esta não passa de um pastiche do que foi o modernismo, o resultado de um fracasso altamente mercadorizável e acrítico.

E desde esse ponto, é importante observar quais caminhos distintos a tipo de análise se pode tomar, através da leitura que faz Hall Foster (1999) das neo-vanguardas, por exemplo. A análise de Foster sobre as neo-vanguardas é sempre muito intrigante. O fato de ele se utilizar de teorias psicanalíticas para entender o processo criativo realizado pelos artistas que retomavam ações inicialmente realizadas por vanguardas como o Dadaísmo e o Surrealismo já demonstra o quanto este teórico quer desbravar este fenômeno, ao invés de rechaçá-lo. A partir de Freud, Foster pensará as neo-vanguardas como retornos que tentam resolver um trauma: as vanguardas foram eventos culturalmente traumáticos, não digeridos nem entendidos na época de seu primeiro acontecimento, que precisaram ser retomados para, de fato, se realizarem em sua plenitude de potência.

Dessa maneira, Foster acredita existir dois momentos de retorno neo-vanguardista. Um primeiro aconteceu no início dos anos 1950 e, para ele, foi um momento de retorno acrítico, de mera repetição das ações de vanguardas anteriores. O segundo, ocorrido nos anos 1960, representa um retorno mais lúcido e crítico, no qual as neo-vanguardas finalmente conseguem realizar a crítica à instituição-arte preconizada pelas vanguardas. A ampliação da consciência histórica, da formação acadêmica dos artistas são fatores apontados por Foster para essa realização mais crítica do segundo retorno neo-vanguardista. Mas a explicação freudiana é ainda mais interessante para entender o fenômeno por ele apontado.

A partir dessa visão psicanalítica, Foster acredita que na primeira neo-vanguarda ocorre um processo de repetição que parece necessário ao processo de reconhecimento, visto que este conteúdo (a ação da vanguarda) havia sido reprimido no momento de sua primeira manifestação. A segunda retomada acontece num momento posterior. Dessa maneira, já realizada a repetição, esse conteúdo anteriormente reprimido pôde ser elaborado e, dessa forma, criticado. Sendo assim, para Foster, o chamado fracasso da vanguarda histórica e da primeira neo-vanguarda em destruir a instituição-arte capacitou a segunda neo-vanguarda à submeter a um exame desconstrutivo esta instituição. Um exame que, uma vez mais, se amplia até abarcar outras instituições e discursos no que ele chama de “arte ambiciosa” do presente (1999:26,27).

Ao assumir esse ponto de vista sobre as neo-vanguardas, ele bate de frente com Peter Bürguer. O principal erro deste autor, em sua visão, é o de não perceber a dimensão performática das vanguardas e, por isso, tomá-las como um projeto “real” de mudança social e artística ampla que fracassou. E ao assumir essa visão romântica da vanguarda, Bürguer cega para a possibilidade de uma segunda retomada dessas ações performáticas como possibilidades reais de crítica para a arte no período pós-guerra. Sem desconhecer a importância deste autor para a descoberta da dimensão histórica da arte que as vanguardas revelam, Foster também reconhece que a insistência de Bürguer no fracasso da vanguarda e da impossibilidade de um novo projeto artístico o faz cegar à sua própria descoberta de que a vanguarda revela a historicidade de toda arte. Dessa maneira, ele cega para a possibilidade da existência do que Foster chama de arte ambiciosa (ampliação da crítica pré-guerra da instituição-arte, produzindo novas experiências estéticas e intervenções políticas) (1999:16).

Para Foster, Bürguer deixa de perceber as dimensões miméticas e utópicas das vanguardas ao tomar ao pé da letra a retórica romântica de ruptura e revolução destas. A dimensão mimética da vanguarda seria a capacidade de mimetizar o mundo capitalista moderno degradado a fim de não aderir a ele, mas burlá-lo. A dimensão utópica, por sua vez, está no fato de que a vanguarda propõe o que pode ser, quanto o que pode não ser como crítica do que é. Para Foster, a ação vanguardista de ruptura e revolução é retórica no sentido de que é contextual e performativa, não podendo ser tomada como ampla e profunda, como projeto a ser empreendido (à maneira que Bürguer entende) (1999:17).

E a partir da sua crítica à Bürguer e de sua vontade de recorrer à Freud para compreender a ação das neo-vanguardas, é possível perceber como Foster está lidando como elas: como ações performativas, contextualizadas, que operam rupturas na instituição-arte a partir do seu interior. Para ele, o fato de as neo-vanguardas serem “institucionalizadas” não é um problema, ou um índice claro de fracasso ou negação da crítica. Ao contrário, para ele são as neo-vanguardas que estão institucionalizadas as que parecem possuir a capacidade crítica mais acentuada.

Porém, ao mesmo tempo, são essas as neo-vanguardas responsáveis por constituir o mercado de arte contemporânea altamente volátil e incorporador de novas ações, sejam elas precárias, efêmeras ou críticas. E essa dupla face das neo-vanguardas, que depois se revelará a dupla face da arte ambiciosa do presente, como o autor revela, estará sempre presente na obra de Foster, como uma sombra. A análise pós-estruturalista e desconstrutiva derridiana que este autor parece se empenhar em desenvolver, o deixa alerta para a possibilidade da adesão disfarçada de crítica como um modus operandi da arte, inaugurado pelas ações das neo-vanguardas.

Sem negar sua base Teórica Crítica, Foster reconhece também a dimensão de captura que ronda a produção artística. Sem querer se entregar ao totalitarismo do pensamento pessimista, por conta de sua inspiração derridiana, ele vê essa captura operando, não como algo obsedante e sem saída, mas através de uma espécie de jogo, no interior do qual a prática do artista é algo fundamental.

Há, em sua visão, uma espécie de fronteira entre a desconstrução (a prática crítica) e a cumplicidade (inserção nas regras do mercado). O jogo desconstrutivo da arte abriga a possibilidade de promover críticas profundas no interior da instituição mas, ao mesmo tempo, também tende a promover uma espécie de “cinismo” adesista, como diz Foster. Em outras palavras, a arte contemporânea pode tornar-se uma ação no interior da instituição-arte que, em discurso, tenta desconstrui-la, mas que, em prática, apenas a reforça, compartilhando de seus princípios de mercado.

E é nesse momento que a performatividade artística entra em questão na “luta” contra o mercado e a neutralização da crítica que realiza. O artista como agente, mesmo que Foster não o defina dessa maneira, parece ser dotado do poder de jogar com essas regras, de fazer o jogo desconstrutivo ou o jogo cúmplice na arte, mesmo que posteriormente sua obra escape de seu alcance. E essa dimensão performática da ação política na arte é vista de melhor maneira nas ideias de agente duplo e artista cúmplice que ele desenvolve.

O artista cúmplice e sua potencial versão cooptada de agente duplo, abarcam, portanto, essa dimensão sutil e performática da passagem para um lado ou outro desse limite entre a adesão e a subversão, acima referida. Pensada por Hal Foster (1996), essa ideia permite visualizar, por um lado, a operação artística que “se faz” de cúmplice do mercado para operar críticas a partir de seu interior e, por outro, a ação que “se faz” de subversiva (ou que anula uma anterior dimensão ruptora) para se tornar melhor cotada no mercado. Através dessas construções analíticas, Foster parece visualizar uma espécie de passagem secreta, tênue e precária que, uma vez encontrada pelo artista, o dota da possibilidade de operar a crítica, mesmo estando completamente inserido no jogo mercadológico (apesar de reconhecer que, por outro lado, pode operar a reprodução desse mercado passando pela mesma passagem secreta).


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